Olaria e Figurado

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Idalécio (1952)

Artista e colecionador de arte popular

Piedade

Idalécio Carvalho, mais conhecido por Idalécio Metalúrgico nasceu em 1952, na aldeia da Piedade, Águeda. A terminologia de Idalécio Metalúrgico começou por ser uma brincadeira, fez parte do título da exposição realizada na Cruzes Canhoto, depois tornou-se assinatura, e hoje é quase uma lenda em círculos discretos da arte contemporânea portuguesa. Idalécio diz de si que não é artista e, talvez por isso, mesmo o seja, de forma brutal e inegociável.

A sua obra nasce de uma vida: de quem conhece bem a área na metalurgia, da engenharia e de quem olhou sempre para o mundo com um misto de espanto e ironia. Trabalha com o que sobra: madeira, metal, plásticos, tecidos, lixo electrónico, restos de objetos comuns, mas não faz reciclagem: faz alquimia. Nas suas mãos, o banal torna-se teatral, o insignificante é arte, o erro transforma-se em força.

É assim que surgem os bonecos provocatórios, criaturas híbridas, excessivas, expressivas, que parecem ter saído de alguma festa pagã, de um teatro grotesco, ou de um ritual rural inventado. Junto a eles, surgem animais cheios de cor e de atitude: galinhas, pássaros, homens e mulheres exóticas, figuras que não querem imitar nada, mas sim existir com fúria e graça, como pequenos deuses domésticos, como é o caso de criações como o pasmado, ícone da Galeria Cruzes Canhoto no Porto).

A cor é um mundo à parte. Viva, vibrante, por vezes brutal, cobre as obras como quem grita: contra a invisibilidade, as normas, e o gosto dominante. Nas paredes, nos objetos, e até nos textos que escreve, há uma energia cromática que nos obriga a olhar e a ler. Mas também a sorrir, a rir e a pensar.

Sim, porque Idalécio também escreve. Nos objetos aparecem frases escritas à mão, palavras inventadas, erros assumidos; textos que pedem para ser lidos em voz alta. Há um humor linguístico que mistura oralidade, crítica social, sabedoria popular e nonsense com uma liberdade desarmante.

Mas o mundo de Idalécio não se resume à criação. É também colecionador peculiar de arte popular portuguesa, e mantém um acervo impressionante em constante transformação, num local que designa por bunker, que se localiza em Fermentelos. Neste espaço secreto, recatado e raramente visitado, ou dado a conhecer, apresentam-se centenas de obras de figurado tradicional, arte pastoril, olaria, pratos do Redondo, brinquedos rústicos, ex-votos, organizados de forma intuitiva, lógica e profundamente afetiva e única.

O bunker não é museu. É um espaço mental materializado. Um lugar de escuta, onde as peças mais tradicionais falam entre si e com as criações do Idalécio. É lá que tudo fermenta e que o popular dialoga com o inventado. É lá que percebemos que a fronteira entre criar e colecionar, preservar e reinventar, existe e complementa-se.

A criação, por sua vez, acontece na oficina da Piedade. Aqui, o gesto é direto, o material é o que há, e o tempo tem outro ritmo. Entrar neste espaço é assistir ao nascimento de um mundo, um mundo de figuras falantes, materiais humildes, excessos expressivos e uma liberdade estética que só se encontra nos chamados outsiders, os que criam à margem dos sistemas e das linguagens académicas.

Desde 2016, com a exposição “D’Idalécio todos temos um pouco” na Galeria Cruzes Canhoto, no Porto o seu trabalho começou a ser apreciado. Em 2017, nova exposição nesta galeria: “Metalúrgico sexagenário”. Em 2023, uma mostra extensa foi apresentada na Galeria OOCA, em Lisboa. Mas continua a ser no silêncio dos seus espaços que a sua arte vive com mais intensidade longe dos holofotes, mas perto da terra.

Idalécio Metalúrgico é uma marca, mas é também um gesto. Um convite a olhar o mundo sem filtros, com espanto e generosidade. A encontrar beleza onde ninguém a procura. A aceitar que a arte pode ser feita com falhas, com sobras, com erros, com ironia, mas com verdade.

Quem entra neste universo, não sai igual e é convidado a sentir de outro modo. E quer voltar. Sempre.

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